24 Um Estranho no Ninho


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Um Estranho no Ninho


Era inverno em Brasília e estava seco e frio. Era dez e dez da noite do dia vinte e sete de julho de 1971, quando, então, um leonino agitado com ascendente em áries e lua em libra nasce. Era a partir daquele momento que a minha vida, um pequeno grão de areia nesse universo, começava.
Minha quadra, a 109 Sul, era todo o meu universo quando da terna infância. Um universo repleto de amor tão perfeito que não se desintegrava, não se decompunha. Um universo harmonioso e íntegro, por assim dizer. Um universo de percepções que ia se alargando conforme eu ia crescendo.
Um universo que tinha tudo por perto: a padaria Delícia, onde tinha o pão mais gostoso da cidade na minha percepção; o clube Vizinhança, onde íamos inicialmente e onde aprendi a nadar; o cine Karim, onde assistíamos os filmes infantis à época e, de quebra, fazíamos um lanche no Food’s; os restaurantes Arabeske e o Beirute, onde eventualmente podia se comer esfirras e quibes; a Casa Renato, onde íamos ver os animaizinhos de estimação à venda; e, não longe dali, minha primeira escolinha, o maternal e jardim de infância Branca de Neve.
Era por ali que andávamos por cada pedaço de calçada e brecha de trilha na grama, perambulando a esmo ou por alguma finalidade. No seio da quadra, sob os olhos candentes do amor que provinha de meus pais, eu corria por entre os pilotis dos prédios, pela grama que intermediava os blocos e pelas calçadas que formavam os diversos trajetos de comunicação entre as quadras e entre os blocos. Tudo tão lindo, próprio da ingenuidade daquela idade. Era só brincadeira como devia ser o dia a dia de uma criança.
Quando retornei à casa para as festas de final daquele ano, depois de tudo que tinha me ocorrido, aquela familiaridade já não existia mais. Era como que aquele lugar não me pertencesse mais, apesar de quase tudo estar como era antes e de todo aquele anseio em voltar para lá. Tudo que lá antes me significava, parecia ter se dissipado com aquele pavor que a volta para casa me trazia. Eu não sabia como explicar o que eu sentia na verdade. Era uma mistura incrível de sentimentos.
Pela segunda vez, nesse breve retorno para casa, eu senti na pele o que era ser uma pessoa com deficiência. Começava já perceber pelos olhares das pessoas, com um misto de pena, receio, medo e aversão. Um olhar que lhe intimidava, lhe feria e lhe incomodava profundamente. Afinal, eu mudei tanto assim? O que eles estavam vendo de mais?
A primeira vez que senti isso foi dentro do próprio Hospital Sarah, ainda dentro do Primeiro Estágio.
Após muito tempo idealizando um namoro com uma menina da escola, aquele amor platônico se concretizou depois do acidente: parecia que Deus estava me querendo conceder alguma coisa boa para compensar por tudo que estava passando ou, de alguma maneira, me tirar a atenção da verdadeira dimensão do problema naquela fase aguda.
Quando o namoro começou a emplacar, ele passou a desencadear desconforto e preocupações nos pais da minha namorada. Que futuro estará reservado à minha filha com esse rapaz?, devem ter pensado. Gastando seu tempo para visitá-lo que não se sabe se irá viver muito tempo! Se sobreviver, o que será dele? E ficará minha filha tolhida de um futuro melhor? E esse tempo à toa indo lhe visitar? E seus estudos!?
Assim, depois de alguns meses de namoro, recebi sua mãe no hospital que veio buscá-la após a visita diária. Enquanto eu e ela nos despedíamos como namorados, meu pai e sua mãe conversavam mais reservadamente na área externa do Primeiro Estágio, próximo ao jardim de inverno. Uma conversa que pareceu demorar não mais que vinte minutos.
Quando acabaram de conversar, vieram os dois calmamente se aproximando de nós. A expressão de meu pai estava estranha e demonstrava desgostoso com algo, ao passo que a mãe da minha namorada chegou sorrindo e começando a expor o que ali viera fazer.
“Cláudio, sabe o tanto que minha filha gosta de você. E também percebo o quanto você gosta dela. Só que, como você sabe, ela está no último ano da escola e agora mais que nunca precisa se dedicar aos estudos para o vestibular. Você sabe que sua vinda aqui está lhe comprometendo a se empenhar como deveria, além das dificuldades para vir vê-lo sempre. Por isso, terei que restringir sua vinda para visitá-lo. E tenho certeza que você entenderá isso”, disse suavemente e com elegância.
Fiquei olhando meu pai, minha namorada e a sua mãe e ao mesmo tempo parecia que não via ninguém. Parecia que tinha levado uma flechada tóxica, que me fazia sentir muito mal. Nunca pensei que a atrapalhava e que aquele amor que sentia e despejava nela fosse algo sublime e que compensasse tudo, que fizesse ela se sentir bem e feliz tal qual eu estava sentindo. Não pensava em ser prejudicial a ninguém, muito menos a ela.
Nos despedimos sem eu ter a certeza de quando a veria novamente, recebendo suas visitas cada vez mais esparsas a partir daquele momento. A distância e o tempo se incumbiram de ir esfriando nossa relação, até perder seu sentido. E eu cada vez mais ia perdendo as visitas que antes faziam toda a diferença em minha rotina hospitalar e em meu ânimo.
Quando depois, acho que só depois que meu pai tinha assimilado o que realmente foi conversado, ele me contou o verdadeiro motivo: o que eu tinha me tornado era o principal motivo, um mero estorvo por conta da minha deficiência física; um estorvo sem futuro nem utilidade, sem capacidade de fazer nada e não ser nada mais que o nada que me tornei; que poderia ser capaz de amar, porém, esse amor imporia a infelicidade de quem quer que eu amasse.
Pensei: o que tanto mudou assim? Será que ninguém nunca me amaria nem me veria como uma pessoa como qualquer outra? O que realmente alguém significa ou deve significar por aqui? O que realmente importa?
Chorei sem me conter. E uma dor maior do que a do trauma do acidente, e que não tinha sequer analgésico para isso. Uma dor na alma como se tivessem atingindo lá fundo do meu espírito. Uma chaga que era tão dolorida quanto marcante, que lhe fazia diminuir como ser.  
Quando finalmente fui para casa naquele ano, as dificuldades para entrar no carro, para sair do carro, entrar no elevador, sair do elevador, para dar uma pequena volta no pilotis, para andar na calçada, para fazer tudo, enfim, me enchiam de desânimo. Mas apesar de tudo, eu estava feliz por estar em casa.
Em casa, não tinha nada adaptado ou preconcebido para minha nova condição. Não tinha cama que erguia nem numa altura adequada à da cadeira para me transferir e me sentar. Não tinha cama de banho nem cadeira de banho. Tudo era mais difícil e mais demorado, mas, mesmo assim, meus irmãos e minha mãe se desdobravam para me proporcionar tudo do melhor e a meu tempo. Eu tinha sorte por isso.
Contudo, eu tinha que ter paciência para que tudo ocorresse bem. E isso me faltava e muito. No Sarah, tudo estava ali à disposição e em abundância: cama, lençóis, travesseiros fraldas, coletores, remédios, fisioterapeutas, técnicos de enfermagem, enfermeiros, médicos etc. Conquanto não morasse longe dali, faltava ali também meu pai, com toda a segurança que ele me transmitia, pois que naqueles dias estava em viagem aos Estados Unidos para me comprar uma cadeira de rodas motorizada e um computador. Eu me sentia um estranho no ninho.
À noite eu dormia num quarto só, sem ninguém por perto. A piorar, minha mãe não queria me dar o antipsicótico e o antidepressivo que diariamente me davam no hospital, pois entendia que eu devia me desmamar e me desligar desses medicamentos, a fim de acabar com sua dependência. Com isso, apesar de chorar, pedir e implorar, tive que ficar sem usá-los, passando três dias sem dormir, até a exaustão chegar.
Numa noite, enfim, de sono, de repente, tenho um espasmo muscular forte, coisa que eu nunca tinha tido por conta da associação dos diversos medicamentos, inclusive os que me foram tirados. Esse espasmo fez minhas pernas se esticarem a ponto de se apoiarem na parede onde estava encostada a cama e fizeram uma alavanca para me projetar todo para frente, quando, então, fui arremessado para fora da cama. Houve um estrondo alto com meu corpo caindo no chão, completado com o barulho de minha cabeça batendo sem controle no assoalho.
Eu gritei e chorei de dor. Minha mãe e meus irmãos foram imediatamente ainda sonolentos, irritados com o susto e pedindo para eu me acalmar. Acabamos discutindo e dizendo muita coisa que não valia a pena ter dito. Eu não conseguia me conter, só chorava: eu estava com dor, não pela queda, mas por me sentir um inválido, um estorvo, um inútil, e que eu estaria fadado e condenado a viver sob a comiseração das pessoas.
Eu estava odiando estar ali. Eu queria realmente morrer e acabar com tudo aquilo.    

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