13 O Ponto Nodal

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O Ponto Nodal

Com toda repetição de rotina, não tinha notado que quase ia se aproximando para completar dois meses ali. 
O engraçado disso tudo era que, imerso naquele mundo, sem notar e sem querer, eu ia perdendo contato com a realidade lá fora, principalmente com o que acontecia no colégio. E cada vez mais ia me prendendo àquele mundo e àquelas pessoas ao redor. 
Ficava boa parte de meu tempo escutando minhas músicas para me distrair e passar as horas em que eu ficava sozinho. Era só com as músicas que eu conseguia me transportar para longe dali, mantendo-me absorto numa nostalgia incontida.
Assim é que, cada vez mais, eu sentia mais forte a saudade de tudo e de todos lá fora. Do meu quarto, arrumado à minha maneira. Do percorrer os cantos da casa. Do fazer os afazeres do colégio, e da casa também. Do estar no meio das coisas acontecendo. 
Acima de meu leito hospitalar, havia um teto pigmentado de concreto cru envernizado em que eu me fixava com olhos. Ali eu perfazia com os olhos o tracejado imaginário de pontos no concreto que em outro momento tinha ligado.
("Por tanto amor, por tanta emoção ... A vida me fez assim... Doce ou atroz, manso ou feroz Eu, caçador de mim...")
Era num constante retomar daquele esboço: eu tentava criar um mundo de formatos que me projetavam em consciência para momentos da minha vida que já se passaram. Ali eu ficava buscando as possibilidades, os acertos e os desacertos de coisas que eu tinha feito e também reconstruía momentos desperdiçados. 
 ("Preso a canções... Entregue a paixões... Que nunca tiveram fim... Vou me encontrar longe do meu lugar... Eu, caçador de mim...")
Eram momentos em que eu também queria e tentava por meio de pensamentos buscar uma saída para aquilo tudo. E quanto mais pensava, mais meus pensamentos me assombravam, enchendo-me de medo, insegurança, às vezes de pavor. Era tão fácil fazer aquilo, mas também doloroso. 
("Nada a temer... Senão o correr da luta... Nada a fazer... Senão esquecer o medo... Abrir o peito à força... Numa procura... Fugir às armadilhas da mata escura...")
Mexia com tantas situações que pareciam já não fazer parte de mais nada. Era como escarificar uma cicatriz para tentar dar um melhor formato, ou dar a um desenho que não ficasse tão bem feito novos traços, ou que pudesse ocultar ao máximo suas falhas. A vergonha que ali surgia me fazia pensar no tempo. 
("Longe se vai sonhando demais... Mas onde se chega assim... Vou descobrir o que me faz sentir... Eu, caçador de mim...")
A distância do evento do acidente para o que ali jazia parecia só crescer, e uma sensação de angústia queria crescer dentro de mim. E em tempos de angústia, a sensação de que Deus está mais longe bate forte e junto vem a de abandono: era como que eu estivesse fadado a ficar ali para sempre. E que, como a Dona Montserrat, minha vizinha de ala, em coma havia uns dez anos, logo seria gradual e lentamente colocado no esquecimento, num canto de um hospital. 
("Nada a temer... Senão o correr da luta... Nada a fazer... Senão esquecer o medo... Abrir o peito à força... Numa procura... Fugir às armadilhas da mata escura...")
Quando tanta situação me entocando, eu queria fugir, abrir um portal, um portal para estar longe dali. Mas parecia cada vez mais remota, mais distante a possibilidade de sair daquilo tudo. E o tempo estava passando, e nada parecia passar. A repetição das rotinas dava a impressão de que realmente tudo estava estagnado. Não havia quase novidades ali, nem sequer para o meu caso.
De repente, eu escuto uma voz: "e aí, Cláudio? Tudo bem?"
Quando olho, vejo aquele jovem médico mineiro que conheci outro dia, Carlos Henrique. Eu sorri.
"Pois é, esta é a minha hora de almoço. Fiquei com vontade de saber como você está", emendou. "Está precisando de algo?". 
Respondi que não.
Depois de conversar um tempo razoável, ele me perguntou quase que afirmando: "se você quiser, eu posso todo dia vir aqui nesse horário, para a gente conversar". 
Eu achei legal a idéia e assim sempre ele dava uma passada.

* * *



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