20 Um Presente de Aniversário

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Um Presente de Aniversário


Não era um dia comum, era o meu aniversário. 
Eu tinha tanto para agradecer que não começaria só por ter alcançado aquele dia. A relação de situações para agradecimento só aumentava e isso era espetacular: cada vez mais meu quadro clínico melhorava, mais luz se apontava no fim do túnel. 
Se pudesse eleger qual teria prioridade, seria obviamente por estar ali vivo, independentemente de que condição física, decerto com integridade mental preservada.
Eu até aquele momento desconfiei da capacidade da medicina: ela ainda não tinha apresentado provas que aquilo que eu estava passando seria definitivo ou irreversível. Pelo contrário, a movimentação de situações novas que começavam a brotar fazia reforçar minha convicção de que ninguém sabia de nada e que tudo aquilo era passageiro. No meu coração, algo me dizia que muito mais viria, porém minha mente não acompanhava sua extensão. A dúvida me dava certeza e afolava a fé.
O feixe de acontecimentos parecia estar só esperando aquele dia, o dia do meu aniversário. Eu já vinha ansiando por ele há dias. Para um leonino do primeiro decanato, ser o centro das atenções era uma necessidade e nada como o dia do seu aniversário para lhe presentear com isso. 
Naquele dia, eu reveria meus amigos lá fora, como aquele mágico dia que fiquei na área externa. Estava tudo programado. Eu queria mostrar a todos as novidades e, é lógico, saber das novidades. Ali eu contaria com desfalques na turma: por ser férias, por impossibilidade de ir e por ruptura. 
Com um café da manhã diferenciado, meu aniversário se iniciou. Dali parti para meu primeiro banho de maca, com chuveiro e tudo o que podia: depois de meses tomando banho por bacia e paninhos! 
Aquela água veio para lavar a alma, principalmente. Chegou desopilando tudo que era ranço, parecia. Quando acabou, eu me senti renovado. Para completar, passei um vapor no corpo: aí, sim, me senti realmente renovado.
Coloquei roupas de verdade. Nada de roupa hospitalar e fralda. Meu velho jeans com uma camisa jeans delavé, calçando meu bom e surrado docksides. Eu me vi no espelho nem acreditei. Havia meses que não mudava aquele estilo "internado": a roupa realmente muda o homem - eu parecia outro.
A completar, sentaram-me na cadeira de rodas. "Nossa, minha primeira aparição"!
Quando fui sendo levado à área externa, pelo percurso interno, aquele friozinho na barriga me aguardava. Quem será que veio?
Assim que ia avistando os presentes eu ia me emocionando por dentro. Quando me aproximei, já começaram cantando os parabéns. Era tudo que eu precisava.
Após cumprimentar e iniciar as conversas, o respirador foi ligado no compressor de ar. E logo depois, conectado em minha traqueostomia. Podia ficar tranquilo para receber e participar.
Uma faixa de feliz aniversário subscrita por todo mundo restava afixada na parede do espaço aberto. Logo abaixo, uma pequena mesa repleta de guloseimas proibidas num meio hospitalar compunha o cenário. Tortas, salgados, doces, refrigerantes e presentes. Um som rolava um rock de leve.
Depois de um tempo de ambientação, sacaram uma latinha de cerveja. Dei uns bons goles, então. Meses sem nem molhar a boca com um pouquinho. Também com tanto remédio nem poderia pensar nisso. Meus médicos que não soubessem. Aquilo veio como que um clique para me dizer que eu estava vivo. Eu não podia me conter de felicidade.
Embora sem acomodação alguma, o espaço acolheu todo mundo. Como uma reunião bem informal, ninguém parecia se importar com o faltar conforto. Ali vieram todos que eu esperava, como também alguns que realmente me fizeram surpresa após muito tempo sem vir, além, é claro, de gente do hospital com quem fiz amizade.
Passado algum tempo, decidi mostrar a alguns parentes a novidade que guardava até aquele momento. Tirei o encaixe do respirador e fiquei com o orifício da cânula livre, livre para respirar, usando meus ombros como um asmático. 
Muitos olharam sem entender, outros entenderam mas olharam com normalidade, como que já esperando. Depois de um tempo analisando, eu compreendi esses olhares: eram de um quê de comiseração com um de constatação, de constatação que eu estava melhorando a cada dia - e isso era fato. Era um tipo de olhar que eu passaria a conviver quando saísse dali.      
Embora a apresentação fosse curta, com alguns minutos de muito esforço físico, pude mostrar que em breve estaria de volta. Não sabia quando, mas muito em breve. Não sei quantos conseguiram ver esse recado ou se alguém chegou a percebê-lo. Apesar disso, continuei curtindo com muita alegria cada pedaço de tempo com cada um que veio até mim naquele dia.

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