14 Formando Laços

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Formando Laços


Depois de alguns meses, o Primeiro Estágio, a UTI, era minha casa, involuntária, mas era. O tempo num mesmo ambiente acaba por firmar pequenas raízes de familiaridade a tudo que se passa ao nosso redor. E àquelas pessoas que ali estão ao nosso também. 
Sem que possamos ver e nos dar conta, aquele contato e aquele carinho diários passam a cativar nossos corações e despertar em nós laços de amizade. E assim acabam por nos confortar diante de qualquer hostilidade do local pelas circunstâncias.
E eram mesmo por conta dessa intimidade e dessa familiaridade criadas que eu conseguia sentir mais essa ambientação a tudo. Passei a ter naquelas pessoas o conforto necessário na ausência de meus pais, porque elas detinham a chave para amenizar o que se passava dia a dia diante de meus olhos e dentro de meu coração, sem faltar também que faziam com que meu dia ficasse preenchido e menos monótono. 
É claro que, como em todo lugar, tendemos a nos aproximar mais aos mais afetuosos, mais sociáveis, mais abertos à interação, ou a quem mais nos identificamos. E no Primeiro Estágio, não foi diferente.
Ali gostava de muitos, mas tinham alguns que eu adorava, principalmente uma dupla de enfermeiros (e que tinham sido colegas de faculdade) - Hércules e Margarida.
Da minha parte, eu não conseguia esconder minha predileção, nem o que sentia. A competência profissional era inquestionável, mas a minha preferência recaía mais por que eles conseguiam tornar aquele lugar mais agradável, mais humano e mais divertido. Eram ao final das contas como que meus protetores; parecia que nada me aconteceria por que estavam lá. 
O engraçado era que, quando era plantão noturno com os dois escalados, tudo parecia acontecer. A boa química da interação da dupla parecia fazer acionar um detonador e explodir algo ao redor, porque normalmente era quando aconteciam os maiores pepinos nos plantões. As dificuldades eram suplantadas com espírito de alegria e de confiança no que desenvolviam.
Eu tentava ficar de espectador para tudo o que se passava, na medida minhas limitações. O tempo todo me atendo ao movimento. Quando algo inesperado surgia e nada podia ver, pedia a meus pais para narrar o que estava acontecendo, para captar tudo que se passava de novidade. Era uma distração.
Quando mais tranquilo, a monotonia era quebrada pelo Hércules.  Por mais que fosse um procedimento de rotina sem graça, ele sempre aparecia com algo para atiçar e alegrar o momento. Um dançar com os biombos enquanto se ajeitava o ambiente para troca de curativo ou asseio. Um desfile com os carrinhos de parada cardíaca. Um rodopiar ao redor da Margarida enquanto se cruzavam no meio do percurso. Um mero descartar de luvas usadas sempre se tornava em algum malabarismo inusitado. 
Ao lado dele, Margarida sempre estava alegre e animada. Seu habitual andar rápido fazia sacudir aquele rabo de cavalo negro bem comprido atiçando a atenção para o que iria fazer. Seu pisar forte parecendo uma espanhola fazia vibrar no chão uma dança malaguenha. Seus olhos lapisados acentuando o contorno de seu formato vivo e cheio de vida corriam cada ponto do local com a máxima atenção e dedicação. Com um sorriso sempre lançado quando meus olhos encontravam aos dela, ela percorria seu trajeto, de maca a maca, de afazer a afazer, observando os detalhes de cada prancheta.
Quando podia ia até mim, ficava brincando e tão logo ia me fazendo carinho na cabeça e no rosto. Seu afagar era uma benção naquele lugar e me fazia distanciar daquilo tudo que eu vivenciava. Quando tinha tempo para preencher os relatórios de procedimentos, pegava a cadeira e se sentava ao meu lado, como que me protegendo.
Numa ocasião, num sábado à tarde, quando estava tudo quietinho, só minha mãe e eu, e quando não havia mais expectativa de ninguém mais me visitar, pois já tinha passado do horário que o pessoal normalmente chegava e eu me sentindo tão vazio, abre-se a porta vai-e-vem da frente.
Por ela, entram o Caíque, a namorada, e um carrinho com uma televisão e um videocassete em cima, rumando em minha direção. Eu todo atônito com a cena sem entender, acompanhei em vão uma de suas mãos para tentar ver o que continha.
"Trouxe uns filmes para gente ver!", disse ele todo animado, já começando a posicionar a televisão à minha frente.
Assim que chegou foi prontamente questionado e desafiado pelo enfermeiro plantonista. Eles começaram uma discussão moderada embora acalorada por aquilo não ser permitido ali. Meu amigo fez a defesa do que veio fazer e o outro não estava aceitando, ameaçando informar a direção. Enquanto isso, a namorada do Caíque ficava me contando dos enredos dos filmes que trouxeram.
Após um tempo, meu amigo, que era médico residente, ligou para sei-lá-quem que deu a última palavra sobre o assunto. Assim, sem perder muito tempo, passamos nós quatro a ver um dos filmes por eles locados, sob a vigilância e contrariedade do enfermeiro responsável.
Aquilo me fez sentir tão vivo, pela preocupação e pelo carinho. Então, a tarde foi preenchida pela novidade. Como eu me sentia querido e amado, e por pessoas que tempos atrás nada eram em minha vida, e que o destino fez passar significar para mim. 
Contudo, não tinha um dia em que o pensamento não fazia lembrar o cheiro do canto que me aguardava à distância. Com tudo e com todo tempo, ainda assim não conseguia superar o que a casa representava em meu coração, embora muita coisa nesta teria que mudar para acolher a novidade da situação física.


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