12 A Ilha do Medo

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A Ilha do Medo 

As folhas se agitavam satisfeitas com a breve brisa que impulsionava os galhos que as ostentavam. Por entre as folhagens, reluziam os raios de sol que se seguiam insistentemente até o quanto conseguissem atingir. 
Logo abaixo, as sombras formadas tentavam sincronizar a dança conforme a coreografia ditada pelo vento e o sol morno matutino, sem que permitissem ranhuras indeléveis no solo por onde seu espectro passava. 
As plantas delimitavam aquela pequena área externa ao Primeiro Estágio, demonstrando a persistência da vida por entre tantos sofrimentos, como se fosse um pequeno jardim de Burle Marx criado propositadamente para se aquebrantar a sensação de estarmos num hospital, e num lugar que indicava o quanto estávamos por um fio. 
Até aquele lugar aberto, as auxiliares de enfermagem estendiam o cabo de ar comprimido que alimentava o respirador Bird,que continuamente inflava a vida em mim. 
Nesse novo ambiente, eu me habituei à minha rotina matutina de tomar o café da manhã regado a banho de sol nessa área externa, antes do verdadeiro e tão esperado banho no leito. O que também ali servia como minha ampla sala de estar para as visitas. 
Aquele solário era o meu lugar para pensar nos tantos outros assuntos a serem tratados à tarde com os meus amigos; e também na vida: para vê-la dar continuidade no barulho dos acontecimentos, ou em algum saltitar dos poucos pássaros que por ali ousavam passar. 
Era ali mesmo que eu me refazia, onde passou a ser o meu refúgio para descansar de toda aquela clausura maçante. Para completar, todo aquele sol ainda me dava todo um aspecto bronzeado e saudável, em plena UTI...
A analogia fazia parecer com que eu fosse aquele prisioneiro que ansiava por aquela horinha de sol. E assim, quando eu recebia aquela luz, parecia conter toda uma gama de raios que mantinham e fortaleciam minha esperança, aquela que mais dia menos dia a minha redenção chegaria – quando, então, minha pena naquele ergástulo teria sido cumprida, livrando minha alma ou meu corpo. 
No meu íntimo, e não exteriorizada também, surgia e crescia, quase que diariamente, uma necessidade incontida de verdadeiramente celebrar a alegria de viver e continuar vivo. 
E dessa forma por vezes procedia, como um dia daqueles, só de fralda de pano, tomando sol e escutando Beethoven... (O Freunde, nicht diese Töne!... Sondern laβt uns angenehmere anstimmen... und freudenvollere!... Freude!... Freude, schöner Götterfunken, Tochter aus Elysium!... Wir betreten feuertrunken... Himmelische, dein Heiligtum!...)[1]
Aquela semana ao menos não estava sozinho lá fora. 
Era terça-feira, aquele dia da faxina geral e de tudo que era deslocado para uma lavagem bastante criteriosa. Uma equipe de limpeza agilizava os procedimentos para que não atrapalhasse o andamento do trabalho de rotina do Primeiro Estágio. Afinal, a partir das onze horas, começavam a chegar os pacientes que saíam do centro cirúrgico, dia também de maiores intervenções operatórias, tal quando ocorreram as minhas.
 Contava com a feliz companhia de dois colegas de UTI e de uma auxiliar de enfermagem que vez ou outra fazia alguns procedimentos, embora o silêncio mais indicasse não haver ninguém por ali. A barreira visual feita por biombos para um deles lhe conferia maior privacidade em seu banho de sol. 
Éramos três seres vivos inânimes e inertes ao lado de tantas plantas sacolejantes e viçosas. Na parte interna, restava apenas uma senhora quase septuagenária, Dona Monserrat, em coma profundo havia quase dez anos. 
O tempo dizia que fazia pouco mais de um mês que eu tinha dado entrada no Sarah Kubitschek. E observando o calendário, eu tinha que admitir que naquele ínterim não me atentara pela fluência de tanto tempo. 
O desencadear de tantos acontecimentos fatalmente desviaram meus olhos desse controle, mesmo porque muitos deles eu os protagonizei inicialmente, quer bons, quer ruins, coadjuvados por outros sem nome. Alguns me forçavam a esquecê-los, mas o que rasgava a lente e penetrava o quadro da memória, se agarrava continuamente em meus pensamentos. 
Todavia, fazendo um breve balanço geral, tinha motivos de sobra para estar feliz e comemorar, mesmo que não houvesse grandes razões por alguma mudança substancial na minha condição física que me fizesse entrar nesse estado.
Decerto, a rotina na UTI pouco se alterou para mim. No entanto, mirando os olhos no retrovisor da vida, para alcançar o dia que dei entrada naquele nosocômio, pude já me ver livre de muitos daqueles aparelhos que antes me faziam companhia diariamente, soltando as amarras das várias sondas e cateteres que estavam puncionando minhas veias. 
Até ali submetido já a duas cirurgias: uma, para realizar a traqueostomia e manter uma cânula interna; e outra, para fixar à minha coluna na altura do pescoço, próximo à nuca, um pedaço de osso extraído da bacia. 
Sentia que o pior já tinha passado. Naquele momento, alguma chama de certeza de que para melhor ficaria brilhava e ardia dentro de mim, principalmente pela consciência e reflexão comparada de tudo que roçava meus olhos e impregnavam-no.
Registrado em cada prontuário detalhes e mais detalhes de cada paciente, mas fui eu o mudo expectador, por vários momentos, de muitos de tantos sofrimentos e dores não anotados e apontados. A escrita fria escondia ou camuflava ou mesmo não conseguia descrever o que os meus olhos viam e meus ouvidos absorviam, por mais que tentassem os integrantes da equipe de enfermagem daquele lugar me poupar de saber o que aconteceu e o que se passava.
A vibração de algo errado sempre forma ondas penetráveis em qualquer escudo de ocultação dos fatos – e o dia a dia se encarrega de mostrar e ensinar os tais sinais. Nossos algozes invisíveis nos acompanhavam impiedosamente a todo instante, e nos afligia pública e indiscriminadamente. Nossos murmúrios e gemidos não eram por eles escutados e nossas angústias não cediam e nem cessavam, até quando cansados estivéssemos. A dor muitas vezes não era compartilhada.
No claustro, o tempo e a rotina se encarregam também de nos habituar a tudo e a todo sofrimento alheio que antes sentíamos tristes, penalizados e sensíveis. Entrava-se numa roda viva de desprezo pela sua repetição banalizadora, ou pela comparação com quadros mais graves e chocantes. A dor de um ironizava a do outro pela intensidade e complexidade, ou por não se exaurir, e juntas troçavam de nossos destinos.
Naquele dia, pouco tempo colocado à minha frente, meu companheiro de solário jazia ali totalmente imóvel. Sentado amarrado na cadeira de rodas, com a cabeça com uma atadura de algodão para não projetá-la para frente, com um olhar distante e não alcançável, parecia mais não pertencer a esse mundo. 
Seus olhos tristes e lacônicos quedavam pousados numa linha reta e imobilizados, mirando a vaga linha de seu destino. Contudo, paradoxalmente, apesar de tudo, aquele colega conseguia me transferir um tom de felicidade àquele momento especial, quando de nosso primeiro contato.  
Era doído ver aquele ser amado, principalmente quando eu soube que um dia brincou, curtiu, estudou e trabalhou, fez o que podia e não podia e, num dia escolhido pela sorte, fazendo farra com os amigos no carnaval, cheirou lança-perfume, tonteou, teve uma parada cardíaca e pof...! caiu de cabeça no meio fio e fraturou o crânio, afetando total e permanentemente seu encéfalo e tudo que daí dependia. 
A piorar, a prestação de socorro demorou a chegar, juntamente com a necessária oxigenação no cérebro, transmutando um ser do reino animal a um do reino vegetal, totalmente imóvel e sem reação a grandes estímulos.
Depois eu vi: a família sempre vinha à tarde e muito pranteavam todos.  Abraçavam-no, beijavam-no, amaldiçoavam inconformadamente o destino pelo infortúnio. Queriam que o tempo retornasse, porém, ele seguia seu curso à frente, não dando ouvidos a reclamos. 
Soube que, afinal, aquele rapaz, um dedicado iniciante universitário e precoce trabalhador empenhado, teve a possibilidade de apreciar um pouco ou o pouco que a vida lhe destinara. Ora, muitos outros nem sequer tiveram igual oportunidade!
Aquele rapaz, como eu, talvez não tivemos escolha, não podíamos antever o que em nosso caminho tinha após aquela passada, após aquele salto da pedra... 
E aquilo me fazia muito pensar em outros momentos: e se fosse eu, ali brincando de inalar lança-perfume, como já fiz numa oportunidade, num salão de carnaval? Inclusive oferecido e acompanhado por primos e parentes adultos teoricamente mais responsáveis? 
Não merecíamos a chance de desfazer o ato, ou sermos perdoados, pela inconsciência do resultado produzido, ou por ele não nos ser passível? Era, era assim que o destino me mostrava que, do que me restava, eu tinha que plena e obrigatoriamente me sentir contente – e não devia por isso reclamar: afinal, fui poupado. 
Era esse paradoxo que a cena me mostrava. Por isso, eu me sentia feliz ao ver aquele anjo à minha frente. 
Naquele lugar, a tênue separação de dois mundos, de dois momentos, de dois estágios do ciclo da vida, contradizia a sensação aprendida de estarem distantes um do outro, um no início e o outro no fim... pareciam que andavam juntas constantemente, a vida e a morte. E quanto mais nos aproximamos desta, mais queremos virar o rosto para aquela, na ânsia incansável de não sermos por ela sugados ou forçados a não mais voltar daquela interseção de mundos.
A música que estava em seus últimos atos me inspirava a rezar e a agradecer e pedir pelas nossas vidas. Com toda aquela cena, o desfecho trazia vivacidade em meu espírito, alardeando de que o pior já passara efetivamente e que nunca atingiria patamares mais fundos do que consegui alcançar. 
E entoava que muitos que encontrei estavam em situações de incomparável desgraça perto à minha, assim fazendo ver motivos para cada vez mais eu sorrir e reforçar o brilho da chama de que o primeiro estágio ficou para trás, de maneira que dali em diante só para frente meu caminhar deveria prosseguir, constante e em paz.
Eram aqueles olhos puros e enxutos de expressão e sentimentos sabidos, plantados ali, que miravam o infinito e nunca retornavam, nem para nada nem para ninguém, que me faziam companhia. 
Uma vez ou outra rolavam lágrimas, talvez de saudade do que já teve ou por temor do que está por vir, além de muita secreção fluida que se expelia em profusão pela traqueostomia e que escorria até se assentar passivamente numa compressa de pano. 
E enquanto eu olhava aquele pobre inocente moribundo e a ele sussurrava palavras de torcida, de comiseração e de fé, a vida, ainda me ensinando, fez soprar um inesperado breve vento, forte o bastante para enfunar o tecido do biombo ao lado. 
O arrasto foi suficiente para levá-lo discretamente a um canto, expondo o outro companheiro que profundamente dormia nu de bruços... 
Era uma cena que não tinha como deixar de me chocar... e aquilo efetivamente açoitou profundamente minha alma e meu coração, enchendo-me de medo e de desolação quanto ao que me fora predeterminado: a partir da cintura para baixo, alcançando o início das duas coxas, eu vi, pela primeira vez, o que era a tão temida e prefalada escara de decúbito. 
Naquela região, a carne viva saltava de seu corpo aparecendo grandes cavidades que deixavam os ossos expostos; mostrava claramente sua anatomia, o desenho de seu esqueleto e parte do intestino grosso. 
Aquele ser humano parecia ter sido arrebatado por um predador implacável que arrancara com suas presas parte de carne de seu corpo, deixando apenas ossos que mostravam a perfeição de sua estrutura esquelética. 
Eu queria chorar e não conseguia. 
Pensei o quanto fui privilegiado por ter sido logo transferido ao Hospital Sarah Kubitschek no dia seguinte ao meu acidente. Por sorte, tive um mero ruborescer na minha região sacra-lombar, diante da constante compressão de meus tecidos, ao não se ter a necessária alternância de posições para viabilizar a circulação do oxigênio na área. 
Por um triz, talvez estivesse na mesma situação do infortunado ao meu lado, que, em razão de descuidos, de más ou falta de condições materiais ou informativas, oriundas da própria ignorância do ser e de uma prévia e adequada assistência médica, tinha sido devorado vivo pela sorte.
Fiquei contemplando a desgraça do outro, com temor. Daquilo não estaria nunca ileso e nem imune, posto que bastasse um descuido, mero que fosse, que as consequências tratavam de acontecer. 
A deficiência vinha completa de limitações físicas e privações de muitos prazeres da vida, mas também de sacrifícios e de imposições inafastáveis que tão-só o tempo se encarregaria de nos mostrar por meio das consequências, quando então saberíamos a causa e efeito de nossas atitudes.
Pois é, aquele lugar era para um aprendizado e sacrifício conjunto. A expiação física só um recebia, contudo, a emocional, a espiritual e, às vezes, moral deveriam ser, e seriam, compartilhadas incondicionalmente. O exemplo naquele lugar deve e deveria ser retido por todos.
No meio de tantas reflexões, a auxiliar de enfermagem entrou de novo em nosso solário. Rapidamente, reposicionou o biombo para dar maior privacidade ao colega, voltando seus olhos aos meus e sorrindo timidamente: “vamos tomar banho, Cláudio?”. 
Sorri com vergonha de perguntar sobre algo que me parecia proibido ter visto ou notado...
Encerrado o banho, vinham os curativos de minha cirurgia. Logo após, decidiram que naquele dia teria troca da cânula traqueal. Agora, é a hora de um pouco de sofrimento físico. 
Movendo os lábios e agitando a cabeça, implorei às enfermeiras para que adiassem para outro dia, quem sabe até o Dia de São Nunca... mas não, era necessário! Elas tentavam me acalmar, me tranquilizar, mas nada surtia efeito.
 Só eu sabia como aquilo doía! A dor no momento da troca era tanta que me causava choro involuntário por isso. Sangrava e ficava traumatizado por vários dias, até cessar quando já se aproximava a nova troca, ao completar o período de doze dias. 
A troca, um procedimento cuidadoso e cheio de atenção, envolvia a retirada do colar cervical que protegia meu pescoço. Após, colhia-se as gazes que protegiam e calçavam a cânula traqueal, cortava-se a fita que a prendia e que circundava meu pescoço, desinflava a pequena bolsa de ar que revestia a ponta da cânula, enquanto se fazia a ventilação manual por ambú. 
Quando todos estivessem a postos, parava de bombear ar nos pulmões, puxava-se a velha cânula e empurrava-se rapidamente a nova traqueia adentro, fazendo novas amarras e voltando-se com a inflação.
A cânula nada mais era que um artefato de plástico cilíndrico oco, da espessura de um dedo, como um cravo grosso, que atravessava forçadamente a pequena e estreita passagem criada cirurgicamente na traqueia, que sempre se fechava instantaneamente quando o anteriormente usado era retirado. 
Até quando teria que suportar aquilo, pergunta que vinha inconscientemente. A situação sempre me direcionava para a cena da crucificação de Jesus Cristo, quando pregavam-lhe violentamente os cravos em seu corpo, que, de alguma maneira, conseguia esvaecer um pouco a tremenda dor que provinha. 
A prostração me atingia totalmente após e a quietude fazia tentar esquecer o acontecido, mas a dor latejava pela sua constante lembrança. E aquela hora de dor, apesar de cercado de pessoas, eu me sentia completamente só, com sensação de abandono, o maior medo que eu podia sentir.

* * *



[1]Oh amigos, não estes sons!... Mas nos deixem agradáveis sons... e cheios de alegria!... Alegria!... Alegria, a mais bela centelha divina, filha de Elisium!... Ébrios de fogo entremos... Em teu santuário celestial!...)

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