11 Um Pouco da Rotina no Primeiro Estágio

11 Um Pouco da Rotina no Primeiro Estágio



Pouco tempo que se seguiu após meu pai almoçar, a porta vai-e-vem mal abre uma pequena brecha. Por ela, surge e passa um rapaz de jaleco com sorriso descontraído, portando vários tubos de ensaios a mão. Era do laboratório, visando colher sangue arterial para uma gasometria. 
Por mais que explicasse, ou tentasse explicar, que aquele exame era para avaliar o nível de oxigenação do sangue e outros fatores, dele só tinha um significado que eu conseguia extrair: doía e muito... uma marca roxa se assinalava de imediato quando retirava a agulha.
Ao fincar aquela agulha grossa na passagem da artéria radial, numa região de relativa profundidade na altura do pulso, causava involuntariamente sensação de arrepios no braço, embora a ausência de sensibilidade tátil e algum resquício da dolorosa. Vi o embolo da seringa de vidro sendo automaticamente empurrado para cima, abastecendo o habitáculo com um sangue vivo e límpido de impurezas. 
Mal terminado o exame, a porta novamente se abre escancaradamente. Um aparelho branco pescoçudo engraçado surge por entre a abertura e começa a ser arrastado languidamente por duas pessoas e se ruma à minha direção. Nas mãos dos que conduziam o equipamento, algumas placas de radiografia pesavam desajeitadas. 
Quando o técnico de laboratório fechou a maleta com os conteúdos separados e assinalados, os técnicos de radiologia terminaram de posicionar o aparelho de raio X. Sem muita demora, colocaram as placas de metal no meu corpo e logo começaram a fazer radiografia da parte pulmonar e do pescoço. 
– “Quanto vira para cá, vira para lá!”, pensei. “Parecendo um boneco de estopa!”, completei em pensamento, não vendo o momento para tanta chatice parar. 
Depois de alguns minutos, após a conferência das chapas, deram-se por satisfeitos. Finalmente pareceu que as atividades matutinas estavam encerradas. Com aquela conversa toda da manhã e por tudo que eu fora submetido, eu já estava me sentindo novamente exausto. 
– “Isso é que eu nem tinha feito nenhuma atividade física por minha conta!”, constatei. “Será que tudo se repetirá à tarde? Não pode, senão vai me atrapalhar na hora das visitas...”, resmunguei em pensamento com uma pontada de ansiedade. 
– “Será que tudo se repetirá à tarde?”, repeti. 
Quando achava que o momento da tranqüilidade chegara, surgem duas auxiliares de enfermagem para mudança de decúbito. Mudança de quê...? O quê? Hum, era mudança de posição do corpo na cama. 
Enquanto lidavam comigo, uma delas me esclareceu didaticamente que a alternância de lados numa pessoa acamada, principalmente as que não tinham mobilidade, era de fundamental importância tanto para se prevenir problemas respiratórios, quanto para se evitar o surgimento de escaras de decúbitos, sem faltar outros benefícios para a saúde. 
– “O que são escaras de decúbito, meu Deus?”, pergunta que me saiu automática.
– “São feridas surgidas em alguns pontos do corpo pela constante compressão por contato demorado, principalmente onde os ossos são mais salientes. Neste lugar, a circulação do sangue corre deficitária e com isso há má oxigenação nas células. Com o tempo, ocorre a necrose do tecido pela morte das células. Fica um buraco fundo no corpo, deixando aquela área em carne viva pela exposição. Tem gente que dá para ver os ossos e as vísceras”, intercalou meu pai, dando sua explicação.
– “Eu já tive?”, perguntei.
– “Graças a Deus, não. E nem terá, se sempre observar seu corpo e obedecer a certos cuidados! Mas, para você ver como é frágil e seu caso é suscetível, por muito pouco não teve um início, em sua primeira noite no Hospital de Base! Por não ter mudado de lado à noite toda, você já apresentou um esboço de vermelhidão no bumbum – que é o primeiro sinal! Ainda bem que aqui no Hospital Sarah, eles logo deram o cuidado adequado e pouco tempo depois, sumiu tudo”, completou. 
Entendi tudo, porém não consegui enxergar a seriedade do que meu pai e aquelas moças estavam falando. Só percebi que dali, lá ia eu mais uma vez entrar no pega-estica-puxa-gira-e-faz; só que desta vez colocado confortavelmente numa posição lateral, todo apoiado por muitos travesseiros a fazer inveja à Cleópatra.
A poucas passadas de meus olhos, os enfermeiros que entraram às sete da manhã e sairiam às quatro da tarde se reuniam com os que começariam sua jornada de trabalho naquela hora e concluiriam-na às sete da noite, quando era novamente repetida aquela cena de passagem de plantão. 
Bem acomodado, percebi que naquela posição lateral era a mais adequada para repousar, e também observar os que entravam. Ali poderia esgotar minha imensa curiosidade quanto a tudo que me cercava. 
Poderia participar de tudo o que acontecia. Era igualmente a posição que eu melhor podia prestar atenção nos relatórios que eram discutidos na passagem de plantão – cada detalhe de cada paciente e os acontecimentos mais importantes que eram renovados.  
Senti que era o momento para eu conhecer ao máximo o meu quadro clínico. Poderia combater a menor brecha que houvesse para me desanimar e arrefecer minhas esperanças. Vi que era a ocasião para me ocupar com algo e assim matar o tempo, como também sentir mais seguro, e com alguma companhia quando meus pais não pudessem ali mais estar.
Daí que, pela própria pela posição estratégica no lugar da minha cama, tornei-me o observador-mor do lugar. Por outro lado, pela quantidade de penduricalhos, objetos e equipamentos, virei alvo fácil de tantos que queriam por vezes me ver e falar, ou investigar o que comigo acontecera. Assim, perdi também o direito a algum instante ínfimo de intimidade com minha alma e meus pensamentos. 
Meu pai viu que eu estava bem entretido com a passagem de plantão, e logo se aproveitando disso, de imediato atacou:
– “E aí, meu filho, agora vamos almoçar?”, perguntou sorrindo.
Eu o olhei querendo negar.

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