9 Um Dia Desses
9
Um Dia Desses
Aquele
cochilo foi muito mais uma dormida funda e curta. Com tanta falação e tanta
divagação, acabei saindo do ar por completo. Quando abri os olhos, meu
fisioterapeuta e meu pai estavam terminando a movimentação de meus membros.
Júnior logo disparou quando me viu de olhos abertos:
– “Cláudio,
agora faremos a fisioterapia respiratória... para tirar a secreção que se
acumula nas vias aéreas.”
Daí começou.
A cada inflada de ar nos pulmões com o respirador vinha em seguida uma
compressão com as mãos do fisioterapeuta de uma parte do peito. Depois, pulava
para o outro lado peito, vindo sempre debaixo para cima. E assim se seguiu
alternando algumas vezes.
Pouco tempo
depois, eu já sentia dificuldade em respirar pela quantidade de secreção que ia
se acumulando na saída da traqueostomia. E o desconforto só aumentava com a
movimentação proporcionada pela fisioterapeuta. Quando o Júnior viu que estava
criando dificuldade para o normal funcionamento do aparelho respirador, decidiu
chamar uma enfermeira.
A enfermeira
chegou imediatamente e toda paramentada com máscara e um carrinho onde tinha
luvas esterilizadas e cateteres. Ela com extremo cuidado rasgou o saquinho onde
continha um cateter e deixou-o entreaberto em pé. Em seguida, calçou as luvas e
retirou a manguerinha do saquinho, juntando-a numa mangueira de látex laranja.
Logo me dirigiu a palavra:
– “Oi,
Cláudio. Tudo bem? Eu vou aspirar sua secreção; ok?”.
Eu olhei para
ela e não entendi nada. Quando vi, ela tirou a espécie de cachimbo que prendia
o respirador na cânula da traqueostomia e logo saltou um montão de secreção.
Ela rapidamente começou a aspirar, retornando o cachimbo do respirador para seu
lugar para me dar fôlego. A cada introdução vinha em resposta uma tosse
involuntária, combinada com uma pequena dor.
O desconforto
com a introdução do cateter na traquéia era compensado pelo alívio que a saída
da secreção trazia – era um mal necessário, pensei. Por ser novo, a borda do
orifício da traquestomia ainda sangrava um pouco, misturando a secreção que se
desprendia. Após algumas vezes, finalmente tinha acabado e eu me senti aliviado
e cansado ao mesmo tempo.
Júnior pegou
o estetoscópio e me auscultou, sorrindo em seguida.
– “Pronto,
meu rapaz! No final do dia, eu volto.”
Um pouco
cansado, não queria mais nada: estava exausto. Em seguida, meu pai apanhou
também o estetoscópio e começou a me auscultar. Logo depois, disse, retirando o
equipamento dos ouvidos, quando concluiu sua auscultação:
– “Graças a
Deus, os pulmões estão limpinhos. Isso é um ótimo sinal. Livre de infecções ou
qualquer outra coisa”.
Quando
guardou o equipamento no criado mudo ao lado de minha maca, aparece uma senhora
com roupa amarela e avental por trás dele. Ela sorri e deposita em cima da
mesinha duas bandejas. Meu pai se volta para elas e fica examinando o conteúdo.
– “Era o
almoço...”, pensei.
Olhei o
relógio afixado acima e pensei: “mas já? Às 11 horas?”.
– “Vamos
almoçar?”, me perguntou meu pai, descrevendo o cardápio: papinha!
– “Não, pai,
agora não, obrigado! Daqui a pouco; estou cansado!”, dando-lhe uma desculpa
esfarrapada.
Ele tratou de
se sentar e começou a almoçar para tentar aguçar meu apetite:
– “Hum, está
uma delícia; nem parece comida de hospital! Você vai adorar!”, exaltou.
Fechei os
olhos. Voltei meus pensamentos ao horário. Faltam poucas horas para as visitas!
Quem viria? Será que a galera toda viria? Que legal! Estava louco para saber o
que estaria rolando lá. O que será que estariam comentando do acidente e de
mim? Será que eles sabiam da gravidade?
Abri os olhos
e vi meu pai dando cabo ao almoço. Logo perguntei:
– “Pai, quem
já me visitou?”, perguntei curioso.
– “Ah, meu
filho, tanta gente! Gente que eu nem imaginava veio. Muitas pessoas se comoveram
com o acontecido, com o ocorrido. Onde eu fui e vou, recebi e recebo mensagens
de apoio, de solidariedade, de força, de fé, de amizade. Um monte de corrente
de prece está sendo feito. Inclusive, um pouco antes de começar o horário de
visita, virá uma amiga do pai do Zé Arroio, Dalva, que fará um trabalho de
energização de cristais em você. Disse que é muito eficaz!”.
Eu pensei em
tanta coisa enquanto meu pai falava. Estava até surpreso em escutar meu pai
falando de cristais. Eu nunca soube que ele gostava ou muito menos cria nisso.
Numa hora
daquelas, qualquer coisa que venha somar na minha pronta recuperação era bem
vinda. E eu acho que era assim que meu pai estava pensando, aceitando toda ação
positiva canalizada para meu bem estar. O importante era que uma corrente
estava sendo feita, uma corrente de mentalizações, de vibrações, de desejos
bons em prol de uma causa. E cada um dava sua colaboração à sua maneira.
Era como se
nada pudesse ser quebrado por pequenas diferenças. Eu sentia aquela vibração positiva,
meu espírito já fulgurava aquela toda emanação; de alguma maneira estava contagiado:
assim eu sentia.
Ora, um
estímulo, um apoio, na hora certa, transfigura o estado de ânimo de qualquer
um. Qualquer um se sentiria motivado, quando em seu pior momento, tivesse o
carinho, o amor, a solidariedade, a fé e o estímulo de outra pessoa. Afinal, é
a isso que recorremos no dia a dia, quando mais estamos necessitados, carentes
e fragilizados. Até porque é isso que nos impele a estar aqui.
O que
adiantaria ter tudo que há nesse mundo material, e não ter carinho, amor, solidariedade, e o estímulo de
outra pessoa? O que valeria de ter? Ali a abundância material não mais
significava: outros fatores pesavam, precisava ter fé, pois senão estaria sem
chão. A fé é o que nos põe para frente, nos faz erguer quando caímos e só
conseguimos nos por para frente quando encontramos motivo para isso, que é
quando amamos e sentimos amados.
Quando em
nosso pior momento, nós conseguimos ver quem realmente somos e como temos sido
com os outros. É quando conseguiremos divisar quem nos ama e quem conseguimos
cativar; é quando podemos ver algum saldo de nossas ações e de nosso jeito de
ser.
– “Pai,
graças ao pai do Zé, eu estou aqui, vivo, né?!”, indaguei já sabendo a
resposta.
– “Meu filho,
foi Deus que o colocou lá naquele dia. Foi ele quem viu que você tinha
machucado e de maneira grave. Os meninos não tinham sequer percebido ou acharam
que era mais uma de suas brincadeiras. Ele chamou a atenção deles para o fato.
Logo em seguida correu atrás de socorro. Por ironia do destino, estava passando
uma Kombi e ele conseguiu o apoio daquele motorista e de outros que ali perto
moravam. Ele também fez de tudo para que você viesse para o Sarah o mais rápido
possível. Nós dois nos movimentamos nesse sentido.”
Naquela hora,
bateu-me um remorso forte. Eu achei que ele não gostava de mim por conta das
vezes que eu tinha enchido a cara nas festas na casa dele. Na verdade, era eu
que estava com o espírito armado por levar bronca por erros exclusivamente meus
– era uma inversão minha na posição de vítima no caso. Eu ainda terei a chance
de me redimir, pensei.
* * *
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