8 A Realidade
8
A Realidade
Depois
daquele banho, tomei o café da manhã. Parecia feito para um bebê, cheio de
papinha. Não consegui sentir fome nem muito menos apetite. Embora sabendo da
necessidade de me alimentar, comi por obrigação o mínimo, até porque não senti
gosto de nada.
Olhava o
ambiente e sentia saudade de casa, saudade do que eu lá tinha deixado. Após
alimentado, fui novamente medicado... meus olhos nem esperaram muito e pesaram
de novo, fazendo-me cair no sono...
De longe,
escutei:
– “Ei,
psiu!”.
De novo. E de
novo.
– “Ih,
começou”, pensei, mas não sabia o quê.
– “Ei, psiu!
Cláudio, você bebeu pinga?”, insistiu a voz.
– “Acorda,
Cláudio. Você parece que anda bebendo!”, falou a voz novamente e agora senti um
pegar na ponta de meu nariz. Torci o nariz irritado.
Repetiu a
fala e continuou a pegar no meu nariz. Abri os olhos assustados.
– “Oi,
Cláudio!”.
Quando fui
acomodando minha visão, vi que era um rapaz de uns vinte e poucos anos com
óculos grandes iguais aos da Formiga Atômica, usando um jaleco ocre. Sorridente
e com alguns pontos de pequenas espinhas no rosto, cumprimentou-me, apanhando o
prontuário médico fixado na barra que circundava a cama. Tão logo começou a
tagarelar.
– “Oi,
Cláudio. Eu sou Júnior, Estanislau da Costa Sá Júnior, seu fisioterapeuta. Vim
fazer fisioterapia em você; não só a respiratória, mas também em seus membros.”
Eu olhei para
ele e não entendi nada. Vendo minha cara de não entender nada já se adiantou
explicando:
– “Vim fazer
exercícios para manutenção de seus músculos e ossos. E buscar maneiras para que
você consiga expelir a secreção que fica nas suas vias aéreas, aliviando sua
respiração e evitando pneumonia e outras doenças.”
Quando olhei
melhor para ele, escutei o caminhar típico do meu pai, chegando como se viesse
dos fundos do lugar onde eu estava internado. Tinha acabado de lavar as mãos e me
abriu logo um sorriso curto, passando a mão na minha cabeça e me dirigindo a
fala.
– “Nossa,
aquele lavatório para as mãos no fundo é melhor que o do centro cirúrgico do
Hospital de Base. E aí, meu filho; está tudo bem? Alguma dor?”, perguntou logo
se adiantando ao fisioterapeuta. Imediatamente dei meus estalinhos com a boca
respondendo que não.
Meu pai e o
fisioterapeuta se cumprimentaram rapidamente e logo começaram a conversar sobre
dados específicos acerca da minha lesão, enquanto meu pai pegou uma de minhas
mãos e deu início a movimentos suaves das falanges de meus dedos.
Meu pai lhe
contou que, conquanto fosse mais dotado de experiência na área de cirurgia
geral, tinha igualmente bastante experiência com pessoa com paralisia nos membros,
pois uma vez tinha acompanhado Assis Chateaubriand, o Chatô, dono à época dos
Diários Associados, por um ano, em 1961, num centro reabilitação em Nova
Iorque, na condição de um de seus médicos.
Disse que o
convite feito à época veio numa hora muito boa, pois tinha só dois anos de
formado, não era casado e queria aprender melhor o inglês, além de conhecer os
Estados Unidos, um sonho antigo.
Quando falava
desse período, por vezes me fitando com olhos, mostrou certas semelhanças da
minha condição física com a do Chatô, embora a dele decorresse de uma trombose
cerebral. E que, por este ter tido a necessidade de ficar traqueostomizado,
pelo convívio, acabara por aprender a ler seus lábios, a quem várias vezes
serviu de intérprete.
Apontou
também algumas nuances que observara na maneira de fazer a fisioterapia com
tetraplégico e, especialmente, no momento que a iniciavam, que não viu até ali
no Sarah. Assim os dois trocaram observações ao tempo em que eu ficava de
expectador da conversa tentando aprender ao máximo o que diziam.
De repente,
abrem-se as portas da entrada do lugar onde eu estava internado. Uma junta de
médicos se adentra em seguida e logo circundam minha cama. Era o que chamavam
de visita médica, quando discutiam os casos novos que se aportavam no setor.
No grupo dos
que aparentavam mais experientes, sempre se destacavam dois, um homem barbudo e
de óculos redondos que mancava e uma mulher esguia e alta com sotaque gaúcho,
sempre bastante comunicativos e sorridentes. O barbudo com a prancheta do
prontuário em mãos foi logo cumprimentando meu pai e chamando-o pelo nome,
estendendo-me a seguir um sorriso.
– “Oi,
Cláudio! Bom dia! Sou Beraldo, sou médico clínico! Estamos aqui fazendo uma
visita médica! E aí, tudo bem?”, falou despojado, soando uma voz que vibrava
sempre simpatia espontânea.
Quando
movimentei meus lábios, dizendo que sim, seguiu apresentando um por um do grupo
e eu fui acompanhando com os olhos assustados. A partir daí, começou a detalhar
a todos o que aconteceu, as expectativas para o caso, o que estava sendo feito,
exames e os medicamentos que estavam sendo ministrados.
Sorria quase
que o tempo todo enquanto explanava, passando a mão na barba e ajeitando os
óculos quando se deslocava. Todos escutavam e interagiam com a conversa, inclusive
meu pai e o Júnior. Eu só escutava e respondia com estalinhos dos lábios o que
me perguntavam. Era estranho ser o objeto da conversa.
Com aquilo
tudo que conversavam pude ver que o que aconteceu era mesmo grave, muito grave.
E eu, com tanta coisa dita em casa, tanta orientação, sequer não sabia nada
daquilo tudo e nem pude prever nem prevenir.
À medida que
repisavam os fatos, pela gravidade, sabia que podia ter morrido na hora; mas
não, não morri. Podia ter morrido no trajeto da cachoeira até hospital, por uma
parada cardiorrespiratória; mas não. Podia ter ficado um ser em estado
vegetativo, por conta de um possível traumatismo cranioencefálico ou pela má
oxigenação; mas não.
Não! Estava
tudo ótimo, só apenas sem o movimento das pernas e dos braços e sem a
respiração autônoma. Mas até quando? Não sabia e não tinha a menor idéia.
Aliás, ninguém sabia! Com tanto estudo no Mundo e ninguém sabia!? Quem saberia
o que viria? Ninguém. E agora?
Algo me dizia
dentro de mim para não me desesperar. Ora, se tudo aquilo que poderia ter
acontecido, não aconteceu, então deve ser algo como uma lição do destino. Uma
lição do destino para quê e para quem?
Mas o que fiz
de tão grave para justificar tão reprimenda do destino? Só tinha dezesseis anos
e que me lembrasse até então nunca tinha maltratado alguém ou algum animal. Ou
tenha praticado um mal tal que a justificasse. Ou será que sim? Se fiz, não
conseguia me lembrar.
Com os olhos
fechados, pensei em Deus e pedi perdão mentalmente. Se uma lição assim for,
está aprendida e de hoje em diante serei e terei que ser um exemplo para
conseguir minha redenção. Eu só queria viver, viver intensamente e ser feliz,
nunca foi outro o propósito.
Se, de alguma
maneira errei, eu estou totalmente arrependido e gostaria de ter mais uma
chance. Eu poderia ter? Mas será? E quando esta viria? Ou será que eu já não a
estava tendo? Mas daquele jeito? Tetraplégico? Não era possível! Ou era?
Bem, se
naquele estágio inicial agudo, tudo era incerto, tudo era passível de mudar, eu
vou fazer tudo para mudar, para melhorar. Serei cooperativo e participativo.
Terei que ter paciência e acreditar nessa possibilidade de conseguir me redimir
fazendo o certo.
Eu tenho que
ter fé, pois quem sabe seja isso por detrás de tudo o que estou passando. Ter
fé que isso tudo vai mudar, vai passar e daí vai me restar o aprendizado, até
para outros quem sabe.
Ora, isso
nada mais é que acreditar que aquela mão invisível do destino virá me socorrer,
porque há muito vinha dando importância ao que não importa. E por que não
acreditar que uma coisa melhor virá? Pensar no pior só vai piorar as coisas,
não vai me ajudar em nada agora.
Por isso, não
me deixarei abater, não vou ficar triste, de verdade, porque tenho à frente uma
nova oportunidade. Uma oportunidade de fazer o certo e o que importa nessa
vida.
Nessa nova
oportunidade, eu poderia ser agraciado com o retorno de tudo o quanto tinha
perdido, bastando agir conforme a cartilha, o dever ser. Se é para ser feito,
então, eu farei como manda o figurino e não posso e nem poderei me revoltar.
O que
adiantaria também?! Não ajudaria muito, ou em nada; ou sim? Aliás, alguma vez
já adiantou? Quantas vezes na escola tirei notas boas, mas por conta do
comportamento, de uma revolta, de uma rebeldiazinha, nada foi recompensado.
E que culpa
têm as pessoas que ali estão ao meu redor, cuidando de mim e me ajudando? Terão
que aguentar minha revolta, minha tristeza, minha ira? O erro foi deles? Dos
meus pais? Se foi deles, tudo bem, está justificado – daí poderemos fazer o
quê? Se não, não justifica eu descarregar ”minha metralhadora de mágoas” em
cima de ninguém.
O erro foi
meu. Ah, sim, então, a mim deverá ser vertido o chumbo grosso. De que modo?
Penar de algum modo ou arrumar alguma pronta solução? Qual? Morrer?
Para mim, que
amo viver, e sentir a vida em toda a extensão da palavra, o que me adiantará
perder a vida, ou por algum meio que não sei ainda, tirar-me a vida? A morte
resolverá? Acabarão meus sofrimentos? Ou se assomarão outros tantos?
Eram tantas
perguntas que circundavam e penetravam de uma vez na minha mente. Eu não sabia
a resposta para nada.
Sabia que
estava ali, vivo, sem movimentos nos membros, e respirando por um aparelho que
tinha o nome de “Bird”, cheio de sonda e cateteres, de fralda, apoiado por vários
travesseiros e com um pinça de metal presa no meu crânio que sustentava ao
final do cabo de aço alguns quilos de peso. E só.
Acerca
daquilo tudo que eu estava passando, segundo o pouco que eu soube até ali, só o
destino teria a última palavra. Bem, se ele tem a última palavra, farei com que
ele reconsidere minha situação, e me consagre algum benefício por eu estar
arrependido e estar disposto a fazer o certo.
Após um tempo
de divagação, estimulado por todo aquele parlatório médico ao redor, as pálpebras
já não conseguiam mais abrir e assim dormi pesado.
* * *
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