7 A Recepção

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A Recepção

Naquele escuro universo onírico, parecia que eu escutava alguém conversando ao meu lado. Era como se fosse um som soando forte e ao mesmo tempo no fundo de um corredor escuro.
Aquela voz longínqua suave me soava familiar, e falava sobre mim. Falava sobre meu estado de saúde e outros detalhes sobre quem eu era, o que aconteceu e que deveríamos ter fé para superar tudo o que estava acontecendo.
Com uma voz bem suave também, a outra vinha acompanhada de interrupções pelo esforço na movimentação de alguma coisa e na preparação de algo. Logo então uma outra pessoa começou a se movimentar também para ajudar a primeira, e tudo fazia crer que se conheciam bem, participando animada da conversa.
Quando eu sentia o vibrar de uma dessas vozes, era como fosse minha mãe falando. Talvez até fosse ela, mas eu estava num sono tão gostoso que me dava preguiça em pensar ter que abrir os olhos. Porém, a curiosidade também começava a me matar. Eu precisava saber quem eram essas pessoas! E não resistindo, eu fui sendo chamado à realidade e logo abri os olhos.
Hum, que clarão!
À medida que eu ia tentando me acomodar a visão, as imagens iniciavam um melhor delinear dos que ali conversavam. Ao perceber o movimentar das pálpebras, minha mãe logo sorriu quando me viu com olhos abertos. Vi que seu semblante aparentava cansado, mas menos abatido que na vez anterior. Foi logo me cumprimentando.
As duas pessoas de imediato se viraram para me olhar, fitando-me carinhosamente. Uma delas sorriu e disse:
– “Nossa, ele tem olhos claros!”.
E assim me voltei para ela para melhor lhe reparar seus traços, quando vi no crachá preso à sua roupa seu nome “Fátima”.
Era uma bela morena de olhos castanhos e sorriso largo com um corpo pequeno e esguio, tendo sua cintura fina contornada por uma cinta azul escura. Tão logo interrompeu meu olhar investigativo, me saudando:
– “Oi, Cláudio! Como vai? Estamos preparando para lhe dar um banho, um banho no leito!”.
Quando escutei aquilo, entrei em pânico, procurando minha mãe. Esta logo respondeu:
– “Não se preocupe, meu filho, essas pessoas estão acostumadas a isso... fazem isso todo momento. E qualquer coisa, eu estarei aqui para ajudá-las também...”.
– “É, não se preocupe, vamos lhe dar um banho bem caprichado, gatinho!”, a outra respondeu.
Corri os olhos no crachá e lá constava “Sueli”. Observando seus traços, tentei dizer algo, mas a voz não saiu. Fiquei sem entender. Elas foram logo me explicando:
– “Olha, você está traqueostomizado; tem um orifício em sua traquéia por onde passa um cano que a gente chama de cânula; é nela que o respirador está preso, alimentando de ar seus pulmões. Como o ar não passa nas cordas vocais, você não consegue falar de um modo que a gente escute sua voz”. E assim foi: tentei falar de novo e nada.
Comecei a improvisar uma fala. Movimentando os lábios, produzi alguns estalos na língua e chiados para dar diferenças entre as sílabas e formar alguns sons que permitiam entender o que estava sendo dito. Dei início a um batalhão de perguntas que se seguiram enquanto eu ia tomando banho.
– “O que aconteceu comigo?”, indaguei.
– “Você se machucou, meu filho, e muito. Quando você pulou na cachoeira, sua cabeça bateu num barranco de areia. Ali, você quebrou o pescoço, na altura da terceira, quarta e quinta vértebra cervical – o que eles denominam de C3-C4-C5. Quase na base do crânio. Nessa altura, você perdeu os movimentos e a sensibilidade de seus braços e de suas pernas, assim como sua respiração autônoma. Isso porque você lesou a medula, por onde passam os comandos vindo do cérebro”, respondeu minha mãe.
Fiquei tentando alcançar toda a resposta dada, relembrando alguma coisa da hora do acidente e imaginando como uma situação dessa me fugiu do controle da percepção. Apesar de agitado e meio atirado, sempre tomava meus cuidados e evitava situações arriscadas. Engraçado, meu pai médico e minha mãe enfermeira: nunca tinha escutado uma palavra sobre tudo aquilo – o que dirá os outros?, pensei.
– “Mas é para sempre, mãe?”, perguntei.
– “Ninguém sabe, meu filho. Cada caso, um caso. Só Deus tem a resposta a essa pergunta. Há casos que se revertem rapidamente; outros, demoram um pouco; e há aqueles que nunca se revertem. O tempo dirá, pois seu caso está na fase aguda ainda. Onde machucou está muito inchado, com um edema interno no local do trauma. Daqui uns tempos, podem ser dias, ou semanas, ou meses, o edema já deverá ter reduzido, quando poderemos saber melhor. E à medida que ele vai reduzindo, o corpo vai respondendo a essa situação. Só se terá uma idéia melhor quando se estabilizar o quadro. É a fase que chamamos de crônica. Aqui, sim, poderemos ter uma idéia melhor. Devemos ficar confiante, acreditar nisso”, disse.
– “Quer dizer, que eu poderei ficar bom de um dia para o outro?”, disparei.
– “Sim, poderá!”, respondeu e acrescentou: “o importante, meu filho, é que você não teve nada no cérebro; por muito pouco, você não teve! Você poderia ter tido um traumatismo craniano com a batida. Ou estar vegetando por não ter sido oxigenado suficientemente. Quando cheguei no hospital e vi você, me preocupei muito – e seu pai também. Percebi que estava com os lábios roxos e também com as pontas dos dedos arroxeadas, sendo um sinal de que seu cérebro não estava recebendo oxigênio na quantidade necessária. Isso podia ter causado seqüelas irreversíveis em seu cérebro e, graças a Deus, não; você está bem, bem lúcido por sinal. Até mesmo poderia ter tido uma parada cardiorespiratória. Mas, não, meu filho, você sobreviveu e está aqui. O que virá daqui em diante só Deus sabe!. Todos estão rezando muito e muita gente tem vindo lhe visitar de manhã e de tarde. Os colegas de escola têm vindo praticamente todos; tem até briga para poder lhe visitar. Você vai ver hoje à tarde”.
Eu sorri e comecei a curtir mais ainda o banho, imaginando a confusão. O foco da conversa se voltou para o que viria depois e quando seria o horário da visita. Nossa, como eu queria saber o que estava se passando com a galera, o que estava rolando na escola. Comecei a viajar nas possibilidades.
Ao mesmo tempo, fiquei participando da conversa da minha mãe e das auxiliares de enfermagem, contando maiores detalhes sobre mim e de nossa família. Ao meu redor, uma parede de biombos de tecidos brancos conferia um isolamento visual à minha intimidade, fechando nosso círculo de conversa.

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