6 O Primeiro Estágio
6
O Primeiro Estágio
Desde a
infância me encantei e fui um aficionado por motos, enquanto meu irmão, o
Comte, era vidrado por carros. Ele já aos três anos sabia identificar de longe
vários carros pela marca e mal conversava direito, ficava apontando aqueles
raros importados que transitavam em Brasília. Eu não chegava a tanto, apenas
ficava admirando aquela coisa estranha, principalmente aquelas grandes
importadas.
Quando andei
a primeira vez aos três anos foi por cima de um tanque da moto de um parente.
Mas foi aos nove anos, depois de experimentar uma Mobylette, que nada mais era
que uma bicicleta motorizada e barulhenta, desejei-a ardentemente. Vi, então,
que só a moto preencheria mais da emoção que meu espírito ansiava.
Andar de
moto, como andei depois, parecia refazer meu ser, sedento de se reencontrar em
seu estágio primitivo: era como recuperasse toda aquela liberdade ínsita,
aparentemente perdida ou presa, por entre as suas camadas mais elementares.
Conseguia me
trazer a exata e a verdadeira sensação de como a vida deveria e poderia ser.
Fazia com que minha mente, apresentando-se mais sensitiva e aguçada, se
expandisse quase que ilimitadamente para tentar captar todas as nuances de cada
pequena impressão que meus sentidos podiam enfim alcançar, desde o menor e mais
sutil roçar do ar por entre meus dedos.
Sem
barreiras físicas maiores, dava-me a forte conotação de ser um pássaro sem asas
que voava sem sair do solo, flutuando sobre os caminhos e manobrando por
quaisquer pequenos espaços que se abriam à frente.
Com o sol
torneando meu corpo e o vento acarinhando minha pele, recebia a essência da
vida diretamente de sua fonte, dando-me a plena certeza da minha existência. A
soltura do meu ser parecia ilimitada e eu só tinha que acelerar, e muito.
No auge dos
meus dez anos idade, minha paixão por motos me fez quebrar a barreira da
vergonha. Assim, pedi ao meu pai uma Mobylette como presente de aniversário.
Antecipando
ao pedido, fui numa loja perto da minha escola perguntar o preço, caso houvesse
concordância. Sai da loja já fazendo planos de andar por todos os cantos de
Brasília, sonhando em não pegar mais ônibus para ir ao judô e à natação.
A resposta
de meu pai já era aguardada:
– "Motocicleta é perigoso, Cláudio. É duro de negar, filho, mas isto dói
bem mais em mim." –
parecia música aquela frase, pela sua repetição e minha insistência, que muitos
outros filhos devem ter igualmente escutado várias vezes. Tentei argumentar por
tudo, e várias outras vezes, porém, nada.
Como médico
cirurgião, que constantemente fazia plantão na emergência do Hospital Distrital
de Brasília, um dia arrematou apontando:
– “Está
vendo aquele prédio? É o Hospital Sarah Kubitschek... vou lhe levar para
conhecer um de seus andares, e lá você verá a quantidade de pessoas que ficam
na cadeira de rodas por conta de acidentes, principalmente com motos... eu
adoraria ter uma também, pois é o veículo mais prático que existe... mas os
acidentes são fatais, quando não, deixam seqüelas físicas ou mentais para o
resto da vida... Por isso, não insista! Eu nunca daria uma arma a um filho...”.
Triste, não
queria saber, nem entender, mas tive que aceitar... pensei: um dia compraria a minha...
Quando
acordei estava no Hospital Sarah Kubitschek.
Sonolento,
sem compreender onde eu estava ou o que ali fazia, abri os olhos não definindo
realmente o que estava se passando. Uma claridade incômoda feria um pouco minha
visão naquele instante. O que era aquele ambiente estranho sem parecer com nada
com o que eu conhecera?
Sem portas e
bem amplo, o lugar era dividido em quatro alas por divisórias de madeira
compensada com vidros a partir da metade para cima. Sua parte de alvenaria era
de concreto bem envernizado e dando um ar de mais frio que o habitual, tendo
nas laterais várias portas de correr de metal com vidros.
Estas davam
de imediato para os jardins de inverno, com muitas pedras e plantas de folhas
largas e sagitadas e esparsas palmeiras curtas. O piso era vinílico verde
musgo, impecavelmente limpo e encerado, que acolhia satisfeito a luminosidade
advinda do dia.
Não
conseguia movimentar o meu pescoço, por conta de um colar cervical largo que o
imobilizava totalmente. Naquele instante, repetiam aqueles sons da noite que
dei entrada no hospital. Além do barulho contínuo do respirador, o monitor
cardíaco registrava com um pequeno e incessante sinal sonoro toda a freqüência
dos batimentos do meu coração.
Vários
frascos de soro e de outros líquidos restavam presos acima de mim a um
crucifixo montando engenhosamente por algumas presilhas pretas, que se fixava a
um arco que vinha ao longo de todo o comprimento da cama, da cabeça aos pés.
Neste mesmo
arco, na cabeceira, estava preso um outro crucifixo com várias polias por onde
trespassava um fio de metal – numa ponta se fixava uma grande pinça que se
prendia por pinos cravados em meu crânio, nas laterais, dois dedos acima das
orelhas; e na outra, restava um aparente pêndulo sustentando um grande peso,
fazendo o papel de uma tração.
E aquelas
enfermeiras vestidas engraçadas, como se fosse um filme americano anos
cinqüenta? Com as roupas brancas bem ajustadas no corpo, eram circundadas por
um cinto azulado escuro, cheias de bolso. Juntamente com elas, outras com cor
azulada clara compunham a equipe.
Percorriam
agitadas e interminavelmente, de um espaço para o outro, para atender cada
detalhe nos procedimentos determinados, anotando-o na prancheta afixada no arco
de metal da cama.
Ao pouco que
consegui observar, tinham outros pacientes em outras macas, cada qual com um
detalhe que a minha não tinha. Sacos coletores, sondas, cateteres, drenos e um
penduricalho de outros vidros, tracionadores e outros monitores e respiradores.
Travesseiros,
muitos travesseiros apoiavam cuidadosamente cada membro e suas extremidades ou
as costas quando os pacientes estavam posicionados na cama por uma das
laterais. Criados mudos e mesinhas de assistência nas laterais de cada
cama-leito.
O que
aconteceu? Mesmo domado por uma sensação de extremo cansaço, tentei resgatar o
que me acontecera: o que eu estava fazendo ali e o por quê daquilo tudo. Eram
tantas as perguntas e eu nem sequer podia e estava em condições de falar.
Busquei com
esforço maiores dados lá no fundo de minha memória, como se fizesse uma
anamnese do ocorrido, mas minha mente não tinha elementos cognitivos para
alcançar o que me tinha acontecido. Eu realmente não sabia de nada. Apaguei
novamente.
* * *
Comentários
Postar um comentário