2 No Trajeto
2
No Trajeto
Encostei a
cabeça na janela do ônibus e fiquei fitando um ponto qualquer na paisagem
perdido à frente. O entrar e o sair de pessoas nem um pouco despertavam meu
interesse enquanto era conduzido até a casa do Zé Arroio. Na mente, meus
pensamentos se firmavam em casa, e dentro do meu peito crescia um
arrependimento por não atender o clamor carinhoso de minha mãe.
(“Olhe, oooh venha, solte seu corpo no mundo... Dance cada instante, brinque comigo de novo...”)
Seus olhos
transmitiam um não querer que eu fosse, ao menos aquele domingo em família. Como
uma âncora, aquilo agia como que algo quisesse me reter, contudo eu tinha um
compromisso e os rapazes me aguardavam.
(“Nessa estrada
um pé nas nuvens outro pé noutro lugar... Uma saudade,
uma viagem onde vai meu coracão...”)
Meu coração ficava
lamentando muito, principalmente quando me lembrava que ao meu retorno ela já
teria saído para dar seu plantão noturno. Aquela angústia que se abateu sobre
ele só se quebrantou quando eu me fiz jurar que seria breve o passeio e que tão
logo voltaria, antes da saída de minha mãe.
(“Saiba como
ser livre todo momento da vida... Viva cada instante dia após dia, após dia...”)
Comecei a
recuperar o ânimo a partir de então. Relembrando no trajeto os fatos da semana que
antecederam o passeio, ingressei na zona de grande expectativa de logo chegar e
mostrar a cachoeira para o Daniel Gerber. Por conta do longo período de viagem
de férias de final de ano, da nossa galera, ele era o único que aguardava por
conhecê-la.
(“Nessa estrada
um pé nas nuvens outro pé noutro lugar... Uma saudade,
uma viagem onde vai meu coracão... “)
Sempre
estávamos juntos nas festividades, bagunças e tudo que aparecesse por fazer.
Até mesmo quando tivemos a idéia de começarmos a acampar, lá estava ele
conosco, indo atrás da área e das compras, inclusive servindo sua casa de ponto
de apoio para qualquer coisa do acampamento.
(“Ainda hoje
inda bem no caminho... Vem alguém, mas alguém muito mais... Canto
alegre não sigo sozinho... Uma velha canção rock'n roll...”)
Na verdade,
por sermos menores, não podíamos ir longe nem muito menos desacompanhados – até
mesmo porque a grana era curta. Embora tantas dificuldades, o que não poderia
deixar de ser era que fosse um lugar só nosso, sem interferência de nada e de
ninguém.
(“Ainda vem mais alguém no caminho... É alguém
que não sai nunca mais... É você tão feliz e sozinho... Uma eterna cancão rock'n roll...”)
Acabamos,
então, por encontrar o local onde serviria de acampamento: perto das casas do
Daniel e do Zé, num esboço de futuro loteamento para instalação de condomínios
de casas.
Numa área não
povoada enfiada na descida do platô da QI 27 do Lago Sul, o primeiro
acampamento foi erguido num canto de curva da estrada que cruzava o condomínio
– longe de água e de sombra, às margens de uma grota suja e assentada numa
encosta repleta de cascalho solto. Pior lugar não poderiam ter encontrado.
Não houve
planejamento nem uma busca mais apurada, só a vontade de encontrar um lugar
qualquer que fosse mais ou menos plano para que pudéssemos fincar nossas
barracas e que ficasse perto de nossas casas.
E isso já
era motivo bastante para nos deixar feliz: o que importava mesmo era que já
tínhamos um lugar nosso, só nosso. E com tudo que precisávamos: um do outro com
exclusividade O resto era de menos.
Encontrando
semelhança ao menos com a sensação de liberdade da música do Beto Guedes,
denominamos o acampamento de Lumiar –
porém sempre antenados com a preocupação de surgir alguém estranho,
principalmente quando soubemos que tinham fugido alguns presos da Papuda
naquele dia e que a polícia estava à procura.
Naquele dia
emblemático de 1987, quando o Sting veio
tocar pela primeira vez em Brasília, inauguramos o lugar. Mexíamos na fraca
fogueira e no nosso assado; xingávamos as garotas que frustravam nossos desejos
e deitávamos de rir de nossas besteiras, potencializadas pelo álcool, enquanto as
músicas que tocavam no gravador eram acompanhadas por trechos pelas nossas
vozes desafinadas. A bola da vez era uma fita pirata de músicas inéditas do
Legião Urbana, de seu próximo disco, que, com muito orgulho de sua exclusividade,
procurávamos decorar ao máximo, principalmente Faroeste Caboclo.
De repente,
algum tempo após de acendida a fogueira, quando todos já bem distraídos com o
que ali fazíamos, começaram os pipocos – “Pou! Pou!” – e cruzando no ar, pequenos
lumes vermelhos passavam perto de nós.
Incontinenti,
sem pensar, nós nos saltamos para esconder de qualquer maneira, caindo ou
abaixando como desse, com olhos assustados querendo entender o acontecido –
achando que se tratava dos fugitivos...
Quando
silenciado novamente, então, vimos em cima de uma das barracas do Zé o que era:
um grânulo de brasa queimando a tenda. Eram as pilhas lançadas que estouraram
no fogo!
Num momento antes,
contando com a minha plena perda de noção em virtude da embriaguez, achei que o
rádio precisava de pilhas novas, troquei-as... só que arremessei as novas no
fogo...
Tão logo
corremos para apagar o pequeno queimado... O Zé ficou extremamente chateado comigo
na ocasião, pagando maior bronca. No entanto, à medida que a noite passava,
aquilo deixou de ter importância negativa e começamos a rir da minha bobeira e
do susto que tinha sido, marcando o lugar de vez para nossos futuros passeios...
E assim foi...
Fizemos outras incursões na redondeza e na área, buscando um lugar mais seguro,
mais sombreado e mais espaçoso. Após algumas idas, a uma caminhada próxima
dali, encontramos um ótimo, que possuía água de um riacho nas proximidades.
Neste,
chamado de Taboquinha, tinha uma pequena cachoeira sem grandes exuberâncias
naturais, aliás, nenhuma, mas que nos acolhia afetuosa e placidamente sempre
que íamos.
O lugar se
tornou, assim, nossa atração, para onde passaríamos a repetir outros
acampamentos; mas, sem o Daniel, que era como nosso irmão, faltava um quê em
tudo que fazíamos. Com seu retorno de férias, as coisas pareciam assumir um
outro contorno, um contorno de completude. Com isso, minha semana foi consumida
pela ansiedade em tão logo mostrá-la...
A parada
chegou e a casa do Zé também: tratei de logo saltar do ônibus, correndo em sua
direção...
* * *
Comentários
Postar um comentário